O Silêncio de Deus e Um Vale de Lágrimas

Gabriel Caetano
5 min readAug 24, 2024

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Em sua Trilogia “do Silêncio” o cineasta sueco Ingmar Bergman ensaia sobre o mistério da existência e o apego à religião em meio a um mundo de trevas.

O texto que segue é o resgate de um artigo que escrevi em 2018 falando de duas das minhas coisas favoritas: Cinema e Ingmar Bergman. Antes de ser cineasta, Bergman foi um autor e pensador tenaz que se debruçou sobre família, religião e o desejo humano.

Ainda em 2018 (centenário do diretor) publiquei textos sobre Fanny & Alexander e Face a Face. Espero que gostem! Boa leitura (e bons filmes)!

Dono de uma obra concebida em torno de estudos psicológicos e existenciais acerca de seus personagens Ingmar Bergman, enquanto autor, buscou sempre o conflito. Seus filmes costumam convergir em eventos que abordam isolação, casamento, família, religião (crença/descrença), medo e a impotência do homem perante à força da vida. Três de seus trabalhos mais importantes para entender a mentalidade e mensagem do autor como verdadeiro pensador do cinema compõem um arco informal que ficou conhecido como a “Trilogia do Silêncio”. São eles: “Através de um Espelho”(Sasom i em spegel, 61), “Luz de Inverno” (Nattvardsgästerna, 63) e “O Silêncio”(Tystnaden, 63).

Em observação à trajetória do próprio Bergman, estes filmes trazem elementos de sua carreira como dramaturgo e diretor de teatro. Há também a forte presença de outro dramaturgo sueco em notável influência, August Strindberg. São títulos pautados na simplicidade, Bergman está mais uma vez preocupado em extrair o máximo de seus atores por suas feições e diálogos, para que possam assim exprimir a tremenda aflição de sua existência. Sven Nykvist também foi fundamental para suas realizações, assinando afotografia dos três. Os contrastes de luz e sombra projetados por Nykvist dão aos personagens a densidade dramática tão característica de seu trabalho em parceria com o diretor em seu momento mais intenso.

Através de Um Espelho (1961)

Em Através de um Espelho, uma família composta por um pai, David (Gunnar Björnstrand), o filho Minus (Lars Passgard), a filha Karin (Harriet Andersson) e seu marido, o médico Martin (Max Von Sydow), passa suas férias numa ilha onde eles têm uma casa de repouso (este cenário das Ilhas Faro seria recorrente na obra de Bergman a partir de então, e ele até viria a morar ali). David é um escritor que passa por um momento de bloqueio, enquanto Karin é recém diagnosticada esquizofrênica e, a partir dessa notícia, cada indivíduo naquele espaço passa a lidar de um jeito com a situação. Por mais de uma vez, Karin entra em colapso, o amor que David e Martin sentem por ela são colocados à prova em cenas aterradoras onde Harriet Andersson brilha enquanto conduz sua personagem ao fundo do poço. Desesperada, Karin se vê completamente desamparada quando em um de seus vislumbres, Deus se revela como uma figura monstruosa para ela, que então passa a ter outra percepção da vida.

Luz de Inverno (1963)

Luz de Inverno, no entanto, é uma obra diferente — centrada no pastor Tomas, novamente encarnado por Gunnar Björnstrand, que enfrenta dificuldades para confortar a si próprio e os membros de sua comunidade. Enquanto sua fé é testada por constantes visitas da paróquia, ainda lida com o sentimento da perda de sua esposa, que o torna angustiado e descrente. É incrível como Gunnar, quando fala em tom de desgosto a respeito de sua experiência como sacerdote, está tomado pelas sombras de cada cenário — falando como a consciência teimosa e pessimista de cada personagem, sempre em tons imperativos. Tomas se depara com um conflito ainda maior ao encarar um Max Von Sydow deprimido em vias de suicídio, possuído pelo medo da ameaça nuclear da época. Nesta obra, Bergman é ao mesmo tempo sutil e visceral, indo direto ao cerne da questão quando explana a solidão humana nos momentos de maior dificuldade da vida. As perdas e dúvidas que assombram a racionalidade.

O Silêncio (1963)

O Silêncio parece o mais cru dos três. A incomunicabilidade entre o trio de personagens é devastadora. Duas irmãs, Esther e Anna (Ingrid Thulin e Gunnel Lindblum respectivamente), e o pequeno Johan (Jörgen Lindström), filho de Anna, voltam de uma viagem de férias quando são obrigados a fazer uma parada devido a saúde de Esther. As duas irmãs são claramente distintas. Enquanto Esther é uma tradutora e notável intelectual, Anna é mais ligada aos prazeres terrenos — o conflito entre as duas se dá por muitas maneiras em mais que um plano. São perceptíveis várias camadas de texto que podem ser interpretadas à bel prazer do espectador. Todas sobre a lente de Sven Nykvist, que neste título capta alguns dos planos de alta profundidade de campo mais belos da história do cinema.

Personagens dos três filmes esperam respostas, revelações que os ajudem em seus momentos de aflição. As ideias sobre Deus e a necessidade de sentir a sua presença já haviam sido abordadas brilhantemente no que talvez seja o maior clássico de Bergman: O Sétimo Selo. Nestes três filmes, há maior dedicação a esse debate (visto que o próprio autor nega que eles formem uma trilogia),). Bergman é mais direto e não esconde a vontade de abrir o jogo sobre o que pensa a respeito do assunto, desaguando no seu tema que é sua assinatura dramatúrgica: a solidão e como o homem lida com ela. Atestando isso, está a questão familiar presente em Através de um Espelho e O Silêncio. Não atoa, a frase “papai falou comigo”, enunciada por Lars Passgard no findar da película, marcaria para o sempre o filme, pessoas que vivem juntas, porém desconexas e que aparentemente vivem bem, estão na verdade, desmoronando por dentro. A recorrência entre os temas de Bach é um vínculo interessante entre filmes. Ainda com Através de um Espelho, Bergman estabeleceria seu nome no cinema mundial ao vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pelo segundo ano consecutivo, já que A Fonte da Donzela havia conquistado a honraria no ano anterior.

A experiência com os filmes de Bergman pode não ser a mais otimista se tratando de cinema, em alguns momentos, inclusive, é muito perceptível a ausência da esperança, a ponto de gerar um terrível incômodo ambiente. Então, espectadores acostumados a buscar sempre o bom, belo e moral na arte podem dar de cara com um cinema aparentemente monótono, mas repleto de emoção e questionamentos sobre tudo o que a vida é e pode vir a ser. O sueco instiga seu espectador a confrontar o mundo ao seu redor e o desafia a questionar de onde espera salvação.

O texto foi originalmente publicado no Blog da 365 Filmes que saiu do ar recentemente. Para evitar que essa memória se perca, devo encaminhar algumas das minhas contribuições com o site aqui também.

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Gabriel Caetano

Publicitário que escreve sobre arte e entretenimento. Desde 09 tô na internet falando do que gosto (e do que não gosto) para quem possa gostar (ou não) também.